domingo, 10 de abril de 2011

Nódoa sobre o carpete

nódoa
sf (lat notula)
1. Sinal deixado por um corpo ou substância que suja; mancha.
2. Med Mancha na pele, deixada por uma contusão; equimose.
4. Deslustre.
5. Afronta, ignomínia.

insônia
sf (lat insomnia)
1. Falta de sono.
2. Dificuldade de dormir; vigília; anipnia.
Var: insonolência.



E, naquela noite, ninguém ouviu o disparo fatal.

Nada havia sobre aquela pele alva além dos costumeiros hematomas. Perdera outra luta à Insômnia, a Maldita, um demônio familiar desde os tempos em que não havia nenhum pinheiro velho na Terra. Fazia parte de uma sucessão de bravos guerreiros fadados ao insucesso; toda noite era um elixir e um desespero, o desabrochar e o desfalecer, amável e terrível na presença de sua boca muda e seus olhos sempre fechados: assim instaurava-se o confronto entre a coruja de igreja e o roedor indefeso. Insômnia, a Cruel, cravava-lhe suas garras nas pálpebras do outro, impedindo o seu fechar, e sussurrava-lhe impropérios e inverdades que digeriam o cérebro de sua vítima notívaga, ou ao menos seu naco reservado ao sono. Deste modo nosso caro wistar acordava, morto, do sono não dormido, da batalha nunca ganha àquela que jamais quis vencer.

O que estou fazendo aqui? O que estou fazendo comigo? Nunca soube as devidas respostas para estas perguntas que não deveriam ter sido respondidas. Elas eram ratoeiras postas (e propostas!) pela Insômnia, a Sublevadora, sob o tentador disfarce da reflexão catártica que aquela ratazana, magra de doença, tanto gostava de pensar dominar. Ora essa, senhores, e não é sabido desde sempre que animais não pensam, agem? Como ninguém o avisou disto ele acreditou dominar as palavras, sem imaginar que a cada vez que pegava a caneta para escrever seus pensamentos injetava em si uma pequena dose de cicuta, e que a tinta que alimentava seus cadernos filosóficos era feita com seu próprio sangue, azul como sua nobre ascendência maldita.

Como a todos os filhos bastardos da Noite, a Estéril, só são dadas duas opções, ele ficou com a mais fácil. Sua tez era branca como o céu claro, em evidente oposição à negritude da Noite, a Nigérrima, numa forma infrutífera de lutar contra a realidade ululante prestes a engolir-lhe. A cor de sua pele era a manifestação mais grosseira e visceral de seu inconformismo com sua natureza; sofria diante da Lua, a Tetrafásica, e preteria seu pai, o Sol, o Cara Amarela, pois se não fora sequer acostumado ao calor humano, imagine ao celestial. Àqueles conformados com sua maternidade restava-lhes a pele, pêlo ou pena escura, e ou eram cegos – de paixão – ou olhavam à sua mãe, a Quarta, com olhos arregalados de pupilas dilatadas, aplaudindo silenciosamente antes de aplacar seu desejo de matar, desejo este possuído por nosso sofredor roedor.

Quando a Lua chegou, naquela noite, não estava escoltada pelas Estrelas, as Infinitas, e isto só poderia significar que mais cedo previra o desastre iminente e não queria testemunhas. Seria difícil demais para o nosso homem, feito rato branco pela vida, mostrar-se forte e decidido ao menos uma vez diante de vários seres que, na falta de luz própria, refletiam a dos outros. Ele era opaco, ou suas lentes é que estavam embaçadas desde sempre (e até nunca mais!)? Ciente disso Lua, a Madrasta, cobriu-se de nuvens e espiou por uma fresta a cena que se seguia.

Diante do único raio branco e frio que atravessava a janela aberta de sua sala (e este era o olhar do brilho secundário dAquela que Não Era Mãe), Pavlvs terminou sua refeição favorita, olhou-se no espelho uma última vez, assinou sua carta de despedida à única pessoa que – de acordo com o próprio e sua visão torpe – importava-se com ele, engoliu metade do cano da arma de fogo que estivera ao seu lado durante todo o ritual e puxou o gatilho. TEK! A primeira bala recusou seu destino. Tomara que a segunda apiede-se de mim. Antes de completar o pensamento caiu morto no tapete da sala... Foi-se tão só quanto chegou.

E, naquela noite, ninguém ouviu o disparo fatal.