quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

A santa e a súcubo

santa
[Fem. de santo.]
Substantivo feminino.
1. Mulher canonizada:
2. Fig. Mulher virtuosa, bondosa, inocente.

súcubo
[Do lat. med. succubu, ?o que se deita por debaixo de outro? (< lat. tard. succuba, com infl. de incubus.] (...)
Substantivo masculino.
3. Demônio feminino que, segundo velha crença popular, vem pela noite copular com um homem, perturbando-lhe o sono e causando-lhe pesadelos.


Quando o sol bate em sua face, sua nívea e cândida face, e percorre sua pele de bebê que, de tão imaculada, retrai-se ao menor toque ígneo da claridade, Santina desperta, princesa e primeva. Lava-se, então, da polução noturna e esfrega-se com veemência sem olhar o seu sexo, parte inadmissível de si. Limpa e catártica veste-se com moderação, perfuma-se levemente e parte para o ofício, cabeça abaixada, esquivando o seu olhar do jugo alheio. Cruza senhoras e suas crianças, homens com olhar de fome, vigas, vidas, idas e vindas, até chegar ao trabalho.

Se galanteada pelo seu colega de serviço, moreno, queimado pelo sol que lhe fere, de sorriso branco, nada brando, a porta de entrada para aquela boca que já devorara muitas mulheres, Santina fica acanhada, e sua pele carmesim. Ela é pálida, contudo lamenta não ser diáfana.

Um gole de elixir e transmuta-se em deidade; Cleo é musa que, ao andar pela passarela, inspira o cio e a sede nos circundantes, homens ou mulheres. Cada movimento seu é o bailado de galhos de uma cerejeira com a brisa sudoeste, que aflam de modo arrítmico e magnetizante... É o convite para praticarem, a sós, a dança da vida, comutarem libidos e fluidos, respirarem um o ar que sai das narinas d’outro.

Cleo ignora as forças da gravidade, as leis da flexibilidade, ou seriam estas que curvar-se-iam aos seus portentos? Uma vez sob sua mira nada escapa-lhe ao ataque, preciso e cruel, com garras de fera pintadas de sangue, grunhidos felinos, chamados só antes ouvidos no baixo meretrício... Sua vida é sorvida pelos beiços carnudos de Cleo enquanto todos os seus desejos tomam forma e invadem a fôrma, friccionando-se como o arco às cerdas de um violino voluptuoso. E àqueles, felizes escolhidos para morrer de amor, só resta-lhes a rendição, e perecem de olhos abertos, incrédulos, extenuados.

Cleo lambe os beiços, inspira o olor orgástico e admira-se diante do espelho, corpo cheio de curvas, como têm também seus cabelos doirados. Veste-se com o essencial e ruma para casa, ordenando ao taxista com seu hálito de pecado. Deita-se, então, barulhenta, para acordar Santina. E o hábito refaz-se.

sábado, 22 de maio de 2010

Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada.

viver
[Do lat. vivere.]
Verbo intransitivo.
1.Ter vida; estar com vida; existir:
2.Perdurar, subsistir, existir; durar:
3.Passar à posteridade; perpetuar-se:
4.Gozar a vida, sabendo aproveitá-la:

sofrer
[Do lat. *sufferere, por sufferre.]
Verbo transitivo direto.
1.Ser atormentado, afligido por; padecer:
2.Tolerar, suportar, aguentar:
4.Ser vítima de, passar por, experimentar (coisa desagradável ou danosa):
Verbo intransitivo.
6.Sentir dor física ou moral:
8.Padecer com paciência.
Verbo pronominal.
11.Conter-se, reprimir-se, sofrear-se.


“Não entendo nem compartilho essas alegrias, embora estejam ao meu alcance, pelas quais milhares de outros tanto anseiam. Por outro lado, o que se passa comigo nos meus raros momentos de júbilo, aquilo que para mim é felicidade e vida e êxtase e exaltação, procura-o o mundo em geral nas obras de ficção; na vida parece-lhe absurdo. E, de fato, se o mundo tem razão, se essa música dos cafés, essas diversões em massa e esses tipos americanizados que se satisfazem com tão pouco têm razão, então estou errado, estou louco. Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes — aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem alegria nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível.”
(O Lobo da Estepe - Herman Hesse, página 34)


Ontem, durante o almoço, conversando sinceramente com uma amiga queridíssima, entretanto pouco presente no meu atual cotidiano, cheguei à conclusão de que queria ser uma pedra. Simples assim, uma pedra. Não um busto de alguém notório em pedra polida, nem uma pederneira que seria o gatilho para uma noite clara e confortavelmente morna àqueles perdidos na selva de si mesmos, muito menos uma pedra preciosa, ou a filosofal, com sua feitiçaria e beleza sem precedentes.

Eu queria ser uma pedra, e levar a vida que as pedras levam. Elas é que são felizes. Elas é que sabem viver. Os penedos não só existem como resistem bravamente a esta vida de malogros e flagelos, uma desdita sem fim cujas imperfeições estão mascaradas sob o pó do utópico final feliz. Poderia você afirmar, diante do deus que acredita, sem ter remorso ou soar falso, que é verdadeiramente feliz? Responderia você de modo afirmativo e imediato ao demônio, referido por Nietzsche em A Gaia Ciência, que oferecer-te-ia a lei do Eterno Retorno?

Diante do enigma da existência, um lugar seguro para se viver pode ser... Lugar nenhum. Utopia quer dizer “não-lugar”, um sonho que alimenta a esperança do homem por uma vida em que reina agonia e aparente felicidade em estado alternado como são salteados também as cores de um tabuleiro de xadrez. Eis o cheque-mate que vos faço: sonhar com o impossível é um sonho que vale a pena? Melhor viver o ideal utópico ou a realidade trágica?


Queria ser uma pedra e poder esquivar-me do mal estar que se grassa na civilização e nos é o mais déspota estadista. O sofrimento não acontece em você, não entra por uma brecha da sua alma. Ele sempre esteve ali! Ele faz parte do seu espírito, como ser vivente e inteligente. Nossa psique sofre porque sabe mais do que deve, mas nunca saberá tudo o que precisa. Somos deuses fadados ao eterno martírio por estarmos amarrados a um corpo em constante putrefação desde o segundo em que, ao nascer, inspiramos o oxigênio, vital e tóxico, nosso primeiro paradoxo, e temos como o mais rudimentar dos sons o choro, já pelo desgosto da vida. Existe, de alguma maneira, a dissociação entre viver e o sofrer? Vale a pena você lutar contra o destino, ainda que, no final, você seja (e será!) derrotado por isso?

A única maneira de ser feliz, creio, é viver sem grandes ilusões, como fazem as britas, que nada mais são ou querem ser do que pedras lascadas pela vida e para os viventes, e tocam sua existência aplástica em tons castanhos e cinzas como são estranhos e cinzas os restos mortais do nosso couro que reveste o grande pesar interior. E quando, não muito distante da data de hoje, cansar de viver, simplesmente deixaria de resistir e viraria um punhado de areia a viajar na garupa do vento e a entrar nos olhos daqueles desavisados que olham para o sol e querem ver mais das verdades de Galileu e de Deus. E estes, antes de virar sílica, agradecer-me-ão por cegar-lhes à realidade e apresentar-lhes o indulto e a desgraça de ser uma rocha.

Sabe qual meu maior medo? Viver eternamente.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

De pró-são!

suicídio
(u-i). [Do lat. sui, ?de si?, + -cídio.]
Substantivo masculino.
1.Ato ou efeito de suicidar-se.
2.Fig. Desgraça ou ruína procurada de livre vontade ou por falta de discernimento.

pró
[Do lat. pro.]
Advérbio.
1.A favor.

são
[Do lat. sanu.]
Adjetivo.
1.Que tem saúde; sadio:
2.Que recobrou o estado de saúde; curado.
3.Ileso, incólume:
(...)
8.Razoável, moderado.

Tomo a liberdade de criar uma palavra. Os unificadores xiitas da língua portuguesa hão de me perdoar, mas o assunto é seriíssimo. É questão de vida. De suicídio.

Hoje, 24/02, foi descoberto o corpo em putrefação de uma garota da minha faculdade. Um período acima. Um ano de idade abaixo. Hoje, 24/02, foi descoberto que a menina, Maria*, sofria. Hoje, 24/02, foi descoberto que um pouco de calor humano poderia fazer a diferença na escolha entre a certeza de viver e o planejamento do morrer.

Maria era uma menina aparentemente comum. Tinha dilemas, como todas as pessoas normais da nossa idade, com prazeres e desgostos em relação à sua atual realidade, sabor agridoce altamente incidente a todos que fazem nosso curso universitário, era prestativa, introvertida, adepta dos “poucos e bons” amigos. Mas Maria era mais. Era uma sofredora solitária. E a Angústia, incomensurável que só ela, parida numa depressão arrastada, ultrapassou o instinto mais primitivo dos seres viventes: o da auto-preservação.

Angústia, a filha bastarda da Morte, que dela herdara o sentimento de incômodo, eterno enquanto durar, pegou a mão de Maria, como mãe e filha, caminharam juntas sob promessas de resolução, e disse à menina que o caminho a seguir era procurar a felicidade n’outra vida... Que não haveria esperança enquanto ela fosse Maria... Que Maria não faria falta, era parte do excesso populacional do planeta. Corpo a menos na Terra, espaço garantido no céu. Maria, cega pelas lágrimas ácidas que eram suas únicas companheiras há meses, fez do ambiente doméstico seu sepulcro, do fio do telefone sua espada justiceira. Solitária foi sua morte, reflexo do espaço vazio que existia sempre que se olhava no espelho da vida.

Numa rápida retrospectiva, ao ler as linhas e nós do tecido do tear da vida de Maria, sob o olhar sempre desconfiado de uma das Parcas, a fiadora, vemos fios grossos de uma solidão profunda. A menina tinha na pele a cor do frio que sentia, do papel em branco onde estavam escritos o nome de seus amigos. Ela vivia sob a neve da reclusão; sem braços calorosos para envolver-te; faltava-lhe uma companhia para terapiar.

Ah, terapiar!, o ato de trocar amadoramente experiências e conselhos entre pessoas que se prezam. O dom mágico que nos foi agraciado com o advento das palavras. O melhor dos presentes, o maior dos antídotos. Todos terapiamo-nos, uns mais, outros menos, ou deveríamos fazê-lo. Terapiar seria o elixir de Maria, como foi o de Josés, Joões, patrícios e Patricias. Devolver-lhe-ia o sorriso branco no rosto, o róseo das bochechas, o colorido da vida.

Maria não era uma suicida típica, como poucos, desse contingente, o são. Um suicida em potencial anda entre todos sem trair-se pelo olhar, pode almoçar contigo e se matar 30 minutos depois, pode ser um dos seus melhores amigos e você não saber. Um suicida em potencial não faz drama ou alarde, é alguém que, silenciosamente, grita por socorro. Pode ser seu pai, seu amigo, ou aquele vizinho de apartamento que sempre aperta o botão do andar pra ti por pura gentileza.

Tenho uma missão pra você, que lê este texto. Sabe aqueles seus amigos, assim, muito queridos, e que há tempos vocês não se falam? Então, faça-os saber que são amados, e que as águas do tempo não apagaram seus nomes escritos na areia da sua vida. Olhe para o lado, pros seus companheiros do dia-a-dia, aqueles que sorriem e choram contigo (ou por ti, pra ti), agüentam teu mau-humor e são mal-humorados contigo. Abrace-os fortemente sempre que os vir para que eles sintam, pelo tato, que seu coração bate mais rápido e forte toda vez que os identifica na multidão de conhecidos. Perdoe seu pai/irmão brigão... Por mais que vocês não se dêem bem, um faria uma falta cabal para o outro. Dê importância a quem te é precioso. Esta é a lição que as parcas amizades de Maria propagarão durante suas vidas. Maria quis morrer, mas fez-se eterna. Este é o assunto do próximo post.

*Maria é um nome fictício para que não houvesse a identificação da alma sofredora por curiosos. Neste momento ela precisa de orações, não de pena.