quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Eu escolhi ficar!



escolher
[Do lat. Excolligere]
1. Separar segundo qualidade, tamanho, cor etc.; selecionar, classificar.
2. Separar impurezas ou produto de má qualidade de.
3. Dar preferência a, entre coisas da mesma espécie: Escolher um vestido.
4. Eleger, nomear:
5. Optar

ficar
[Do lat vulg *figicare, freq de figere]
1. Conservar-se em algum lugar; estacionar.
2. Permanecer em tal ou qual situação ou disposição de espírito
3. Não dar mais um passo; deter-se
4. Estar situado


Eu escolhi ficar!



“É abrindo a gaiola que o canário vê que não quer sair”


Olha, nunca fui de fugir da raia. Pelo contrário: com raras exceções (a maioria amorosa), sempre me joguei em tudo na vida. Acredito piamente que o que tem que ser feito tem que ser feito, independente da minha vontade, e sempre que tentei escapar dessas situações fui pega pelos ombros pelo Desígnio e colocada novamente na trilha.  

Aprendi à força o “amor fati”, que significa, em latim, “amor ao fado/destino”, e que de um caminho que é nosso não temos subterfúgio. Obviamente poucas das nossas sendas são estas rijas, e existe o livre arbítrio para a imensa maioria das estradas que marchamos. Resumindo: acredito que, se chegarmos a uma bifurcação, podemos escolher livremente entre ir pela direita ou pela esquerda, mas se tivermos, por algum motivo divino, kármico, evolutivo, ou nenhum desses, que ir pela esquerda, não adianta fugirmos para a direita que sempre haverá uma viela, volta, atalho ou placa enorme colocando-nos à esquerda para que passemos invariavelmente por certas situações. Minha vida tem seguido esta regra, à risca, por tempo demais para que eu acredite em casualidade ou sorte.

Ao ser aprovada, contra as minhas expectativas, num suado concurso de residência médica em São Paulo, me encontrei num dilema. Já me mudei inúmeras vezes, sem grandes receios, de cidade, de casa, de decisões, de status de relacionamento, de universidade, de planos para o futuro, de gostos pessoais... Mas desta vez senti que não deveria. Não foi um pressentimento celestial; não ouvi a voz de Deus ou algo do tipo, a escolha foi bem racional, inclusive, e um tanto intuitiva. Os fati anteriores foram muito mais inexplicáveis, contundentes e irrecusáveis, o que torna esta opção apenas uma oportunidade, uma reflexão.

Apesar de me sentir um tanto solitária, caseirinha, eventualmente ter meus dias melancólicos, estar a mais de mil quilômetros do meu núcleo familiar primário e vez ou outra molhar o travesseiro com lágrimas e saudade... Eu escolhi ficar! Ficar para ver dar certo no Rio de Janeiro, onde estou há sete anos; ficar para estreitar meus laços de amizade, crescer como pessoa e mulher, e aqui arraigar minha vida; ficar para a informalidade e benevolência guanabarinas, raridades no meu estado de origem; ficar para ter como quintal a praia e perfume a maresia, por menos que faça usufruto nos dias escaldantes. Ficar, afinal, por opção.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Mulher rendera



renda
Substantivo feminino
1. Obra de malha feita com fio de linha, seda, ouro ou prata, apresentando desenhos mais ou menos caprichosos, que serve para guarnecer peças de vestuário, roupas de cama

alquimia
Substantivo feminino
[Do ár al-kîmiyâ, do gr khymeía, mistura de líquidos]
1. Química da Idade Média.
2. Arte que procurava descobrir a pedra filosofal, com que transformariam em ouro outras substâncias, e a panaceia universal.

eterno
Adjetivo
[Do lat aeternu]
1. Que não tem princípio nem fim.
2. Que teve princípio, mas não terá fim.
3. De duração indefinida.
4. Que se faz ou se repete amiúde.
5. Imortalizado, célebre


“Olê muié rendera
Olê muié rendá
Tu me ensina a fazê renda
Que eu te ensino a namorá”


Oculta sob pedras, tijolos e temores, onde o deserto, o mar e o céu dão as mãos, estava uma fidalga de tez lívida, cabelos fulvos e mãos talentosas. Sua virtude era a criação, e com os dedos, que bailavam, tecia e bordava com tamanha delicadeza que as próprias ninfas, dos bosques adjacentes, se apoiavam sobre os cotovelos nas janelas de suas torres para vê-la coser. Tudo que findava ganhava vida. As estrelas das suas bandeiras pareciam colhidas da noite, os cavalos dos seus brasões relinchavam, seus tapetes eram os mais felpudos e suas rendas as mais firmes e leves já experimentadas. Diziam ter aprendido com as Moiras; os mais ousados, ser filha d’alguma; os insanos, ser uma delas.

Em seu tempo livre tinha apreço por passear nas brenhas, onde conversava com sátiros e mênades e banhava-se no rio de Heráclito. Certo dia, como por uma peça, o Vento balançou galhos e fê-la vista, semi vestida, aos olhos de um jovem alquimista que ali estava à procura de ingredientes. Embasbacado – uau! – aproximou-se, ofertando-lhe a panacéia. Beberam dela. Beberam de si mesmos. Durante a alvorada murmurou-lhe um encantamento e viu seus olhos cerrando-se mais. Partiu vendo os cabelos dele, negros como as trevas, que davam lugar à coroa de Hélio, serem trançados pelos dedos do mesmo Vento pândego que promovera o encontro.

Na manhã seguinte, enquanto sua roca girava, um bem-te-vi trilou-lhe que fosse à janela. Do alto da torre mais alta viu uma pequena nuvem de poeira; forçou os olhos e conseguiu vislumbrar não só um cavalo, como seu cavaleiro, o alquimista. Segura de sua intatilidade voltou a fiar. Seu castelo era cercado por baluartes, casamatas, barbaças, cadafalsos, fossos e pontes levadiças. Seus portões eram grossos, maciços e em suas muralhas haviam fenestras para o disparo de flechas. Apesar de toda tentativa de aproximação ser rechaçada, o cerco foi montado.

Passaram-se dois meses – ou seriam anos? – e cada empecilho era vencido. O alquimista entendia de ilusões e manejava bem o fogo; cozia poções e porções, curava-se dos ferimentos como que por bruxaria, e era um mestre estrategista. Por vezes ela achou que vira mais de um homem tentando furar o bloqueio e questionou-se sobre a veracidade do mito dos homúnculos. Aberto o último portal por um aríete invisível, feito de perseverança e cádmio, encontraram-se no enorme pátio, ela rendida, ele com um girassol na mão.

Por um período, ou dois, foram felizes juntos. Ela era vista assoviando canções que ainda nem existiam, num radiar que fazia ciúme às filhas bastardas do Sol, enquanto as flores do seu jardim nasciam com mais pétalas e faziam pequenas reverências quando ela passava. Nesta temporada seus feitos tornaram-se ainda mais grandiosos e deles fulgurava uma luz sobre-humana. Até os animais ficaram mais férteis e muitos deles aprenderam, da língua dos homens, palavras belas para bendizê-la.

Entrementes, um dia a brisa soprou gelada e os sorrisos fugiam como animais de uma queimada. Algo funesto crescia no alquimista, e ele tomava seu xarope com mais freqüência, e escondia as ervas com que fazia supostos emplastros, e dizia caçar quando ia à floresta procurar cogumelos para entibiar-se. Suas rendas, percebeu, estavam frágeis e sua roca quebrou; confundia-se nas tranças e seus dedos ficaram abobalhados. Freqüentemente esquecia cosidos usuais e, sem saber o pretexto, matava a sede com lágrimas próprias. As mênades riam dela, enquanto as ninfas pediam intervenção divina.

Certo dia recebeu de um anão itinerante, com quem comerciara dois tapetes e algumas malhas, um anel forjado com maestria que possuía como solitário uma pedra deveras incomum. Naquela tarde, ao conversar com seu consorte em seu aposento, no topo da torre mais alta, reparou, por trás do sotaque estrangeiro e da voz, agora pastosa, que ele já não falava mais com a fluência de antes. Sua voz, melodiosa e doce, que fazia com que tudo que fosse dito parecesse sábio e razoável, tornara-se rude e agressiva, e suas palavras, mesmo que graciosas, já não faziam sentido.

Seus olhos, midriáticos, brilhavam como uma chama verde lodosa; ela olhou muito fundo – o que foi sua ruína - e encontrou muita ganância somada a intenções dúbias. Temeu e tremeu. Ao tomá-la pela mão o alquimista reconheceu o antaglifo, pedra cuja faculdade era a de fazer seu portador não se impressionar com nada, e percebeu que a fascinação estava quebrada. Nenhuma de suas ilusões poderia opor-se ao fim ululante. Aquela noite seria o marco final daquela Era.

Ela ouvira falar na chama verde, a chama eterna, desgraça viva, consciente e determinada de seus objetivos, que só acaba quando consome tudo que a cerca, tendo como vítima final seu hospedeiro. Era um traço inato, não havia subterfúgio! Desesperançada, aproveitou um segundo de oportunidade, desvencilhou-se do alquímico e jogou-se da janela da torre. Não houve estampido. No lugar ouviu-se o bater de asas e uma ave com plumagem amadeirada foi vista pairando em direção à floresta. Enquanto planava, piava “foi... foi... foi...”. As ninfas foram ouvidas! Assim nasceu o urutau.