domingo, 15 de novembro de 2009

Ciclo sem fim

milagre
[Do lat. miraculu.]
Substantivo masculino.
(..)
2.Acontecimento admirável, espantoso:
3.Portento, prodígio, maravilha:
4.Ocorrência que produz admiração ou surpresa:

Sou muito resistente em propagar expressões clichês, frases feitas, sabedorias populares. Mas muito mesmo! Acho tudo muito reducionista, conveniente e visceral, em detrimento do cerebral. Fala-se sem pensar, só porque ouviu a tia, o vizinho ou o cachorro de rua que é BFF (best friend forever) daquele mendigão da esquina dizerem. Nisso inclui-se o dito ‘milagre da vida’. Pra falar a verdade, não acredito nem em “milagre”, “magia” nem em “acaso”. São todas formas de negar forças ainda desconhecidas, mas que serão axiomas em 100 ou mil anos. Milagre, magia e acaso serão as futuras leis de Newton, Avogrado e Gay-Lussac. O porquê d’eu começar o texto enterrando os pés no chão fica claro ao longo dele.

Na semana do dia 20 de agosto de 2007, ou um pouco antes, recebemos, eu e meus pais, a notícia de que minha irmã estava grávida. A mais inesperada de todas as gravidezes. O Chefão das surpresas ditas aquele mês. Inicialmente questionada, porém nunca preterida, a prenhez da minha irmã foi acompanhada com todo o cuidado que poderia ser oferecido. Pra mim e meu pai, ainda, aquela protuberância na barriga dela que tomava tamanho e forma era mais que o ‘milagre da vida’ manifestado. Era nidação, mórula, gástrula; endo, meso e ectoderme; duas arterias e uma veia umbilical; alterações corporais e hormonais. Nossos olhos eram mais acurados, entretanto não por uma possível inteligência superior, e sim por muita reprodução automática de puro conhecimento cientificista.

Depois da ciese veio o parto, e com ele o neto primogênito de meus pais. Arthur? Gabriel? Não, fixou-se João Pedro. ‘Milagre da vida’! Menino saudável, sorridente, com pele de algodão e cabelos que eram palhas de trigo, macias, mansinhas, que dançavam conforme o acariciar do vento. Mas a ordinariedade – se é que teve alguma – acaba por aí. A criança, meu sobrinho, teve um desenvolvimento assustador e formidável (não me pergunte o porquê, ainda me é um mistério). Em espaços temporais mais curtos que minhas viagens estudantis aquele naco de carne, draga de leite, filhote de nuvem, tornou-se o mais expressivo dos seres. Embasbacava-me cada progresso sobre-humano que aquele refilho fazia. Estava diante do meu primeiro ‘milagre’?

Eu já estudara as fases do desenvolvimento infantil na faculdade, porém aquela experiência estava sendo totalmente surpreendente. João Pedro ignorava os compêndios de Pediatria e crescia na sua própria rapidez. Cheguei a suspeitar que nem humano ele fosse. Aquele bebê de movimentos restritíssimos na minha última memória vinha em minha direção com um andar malandro e natural, como se o fizesse, por hábito, há muito tempo. Aquela criança, com o número de meses de vida bem menor que o que eu tinha de anos, usava a visão periférica como um caçador inato. Todas as novidades, de um simples mandar beijo, até movimentos de perna relativamente complexos, ele apreendia e reproduzia fielmente na primeira tentativa. Qual seria o limite daquele menino?

Na minha última visita à casa dos meus pais, há cerca de um mês, encontrei um Joãozinho recém acordado que pediu o colo da tia na mesa de café-da-manhã. Era a primeira vez que nos víamos desde a agosto, ocasião em que ele me presenteou, no dia da minha partida pra Niterói, com a palavra “titia”. Sobre minhas coxas, e diante de uma mesa mui farta, ele gorjeou as palavras “pão, bolo”, e apontou com precisão pros alimentos assim nomeados. Paralisei diante da cena, olhando incrédula pro pequeno adulto. “Pão, bolo, titia” vieram em seguida ao olhar suplicante dele. Deus! Ele estava adiantado mais uma vez!

Para estimulá-lo – e ele é facilmente estimulável e responsivo – ensinei ao João algumas palavras. A primeira foi “folha”, apontando pro jornal Folha de São Paulo. “Folha!” “Fo...” “Folha!” “Fo...la” “Folha!” “Fola” “Fo-lha!!!” “Folla”. Esta situação me remeteu a uma das melhores e mais marcantes cenas de um dos melhores e mais marcantes filmes da minha infância. Quem, nascido entre 84 e 88, nunca assistiu Bambi, um clássico da Disney? Dos que assistiram, quem não lembra do coelhinho Tambor ensinando o jovem gamo a falar? Eis o trecho referido (só achei em português de Portugal), sendo Titia e João Pedro Tambor e Bambi, respectivamente:

http://www.youtube.com/watch?v=n2iqqp6SU5U

Agora costuro o retalho que nos leva ao primeiro parágrafo. Não, não acho as atitudes do Joãozinho um ‘milagre’, por mais que os clichezeiros apregoem este ser o ‘milagre da vida’, mas não posso negar a imprevisibilidade e extraordinariedade do ocorrido. Ele está uns bons meses adiantado no desenvolvimento psicomotor, e tem atitudes assombrosamente inteligentes e adultas. Não é um gênio, que nasce sambando e compondo letras à Chico Buarque, ou apresenta programas infantis em TVs secundárias/terciárias, mas definitivamente não é como os outros da mesma idade. Sua rápida ascendência nas adaptações da vida não é um “milagre”, religiosamente falando, todavia é um “milagre”, aurelicamente usando os significados destacados.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Ser ou não ser?

extinção
[Do lat. exstinctione.]
Substantivo feminino.
1.Ato ou efeito de extinguir(-se); cessação:
2.Abolição, supressão:



Estava hoje, 17 de setembro, conversando com um amigo queridíssimo, que passa por um problema pessoal similar ao meu (assunto pra outro post), sobre o porquê de sermos tão infortunosos no amor. Conversa vai conversa vem constatamos uma teoria que faz muito sentido, pelo menos para nós, com corações suturados. Explicito esta hipótese a seguir:

Dividimos todos os seres viventes e conhecidos em duas categorias: VACAS ou PESSOAS ESPECIAIS. Veja bem, são termos meramente ilustrativos que facilitam a compreensão. Poderiam ser chamados de X e Y, ou Tom e Jerry com efeito símile.


As Vacas são as pessoas simples de pensamento, profundidade de um pires, muitas vezes com o raciocínio de uma pedra ou um celenterado, que se contentam com o regular; comem qualquer capim, desde que seja mastigável, desde o mais puro verde, até aquele de tons dourados, demi-sec. Os Especiais são aqueles de intelecto, raciocínio quântico, cultura (aplicativo não obrigatório), inteligência, poder de abstração, percepção; aqueles que querem mais e mais, eternos insatisfeitos desejando galgar os andares mais altos, solucionar as charadas mais difíceis. Para os Especiais não há estagnação, uma vida de 100 anos tem 100 anos de processo evolutivo. A busca pela qualidade é incessante, o crivo crítico implacável. A proporção de Vacas para Especiais é 10 elevado a alguma coisa pra 1.

Atentamo-nos a explicar o motivo de sermos tão poucos. Tenho certeza que os três conhecidos que lêem este blog sabem o que é darwinismo, mas não posso apostar por eventuais e casuais leitores. Com uma explicação bem rápida, darwinismo foi uma doutrina proposta por Charles Darwin em seu livro Da origem das espécies (1859), no qual a luta pela vida e a seleção natural são apontadas como os mecanismos essenciais da evolução dos seres vivos. Durante a transição de gerações considerável número de indivíduos falece; os que sobrevivem e geram descendentes são aqueles selecionados e adaptados ao meio devido às relações com os de sua espécie e também ao ambiente onde vivem. Está aí a palavra mágica: ADAPTAÇÃO.

Voltando ao teorema, aplicamos o darwinismo na elucidação do número diminuto de Especiais. Somos poucos porque não estamos adaptados ao meio e à maioria. Explico: por que os Vacas são tantos? Porque eles são menos seletivos, precisam de menos para atingir a felicidade; veem menos, então sofrem menos, são menos críticos, contentam-se com o que conseguem. Assim não há, no geral, desarmonia que impeça a aproximação e reprodução destes, transmitindo suas características adaptadas de Vaca aos seus descendentes. Não há crise, há sexo, há prole.

Já os Especiais, mestres da crítica, filtradores por natureza, tem sempre o horizonte como meta. No geral tem aproximação fácil por outros Especiais, trocam palavras enaltecedoras e podem até se relacionar amorosamente, mas a chance de ser um enlace infrutífero é grande. Especiais são menos tolerantes aos defeitos e erros, por remeterem aos Vacas, que não lhes atraem. Um Especial que mostrou sua humanidade ao falhar n’algum aspecto vira um híbrido, Anjo com cascos de Porco, ou Vaca, um ser menos digno de ter o amor puro e alvo de um Especial puro e baio. Assim há o afastamento, a desafeição e a não-reprodução.

Frequentemente os Especiais, únicos ou poucos numa região, são cercados por Vacas, que não lhe atraem muito além da companhia. Aqueles mais condescendentes podem se permitir tolerar uma Vaca do sexo oposto como companheira em prol de uma instituição maior a ser formada: a família. E assim há transmissão de genes, que poderão formar tanto filhos-Vaca com vislumbres Especiais quanto crianças-Especiais, mas mais impuras que a geração acima. Ainda pelo cálculo gênico filhos-Vaca de um dos pais Especial podem ter netos Especiais, o que torna esta categoria rara, mas passível de sustentação ao longo dos tempos.

Não digo que Especiais amem mais, mas agudizam os sentimentos em maior escala, o que é uma característica que depõe contra a espécie. Alcançar extremos no movimento pendular do Amor é um atributo contra-evolutivo. Não estranhem sermos poucos, nem que nosso número diminua com o passar das décadas. Só estranho o fato de não darmos certo uns com os outros. E meu amigo também. Nossos ex-parceiros, Especiais, que o digam.



Escrevi o post com o coração na mão esquerda e ouvindo Apesar de você - Chico Buarque, por motivos pessoais que contarei em outro post, espaçado deste por tempo indeterminado. Talvez nunca venha.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Dama do século 21 (?)

arrependimento
[De arrepender(-se) + -imento.]
Substantivo masculino.

1.
Ato ou efeito de arrepender-se.
2.
Compunção, contrição.
3.
Ét. Insatisfação causada por violação de lei ou de conduta moral, e que resulta na livre aceitação do castigo e na disposição de evitar futuras violações.

De pés descalços Ela caminha, na areia, em direção à sua casa. Seus cabelos eram da cor do sol que refletia no mar a sua direita. A festa do dia passado fazia-se presente hoje; e Ele, em casa, dormia. O sal da maresia penetrava-lhe as narinas e lembrava a Ela que nem tudo da noite anterior fora doce. Aquele quinze ficaria em sua memória, como outros números: era seu sexto dia na cidade, a terceira vez que via o Outro, e sua (dEla) primeira traição.



Já passara da meia noite e Ela não poderia ir embora. Não sozinha. Não depois de onze cervejas. O Outro oferecera sua casa, em troca de silêncio; ou seja: sua cama... Com ele junto. A troca de olhares, um devorando mentalmente o outro, estava presente há horas. Eram jovens adultos, com muito em comum, cujas libidos estavam afloradíssimas. Ela, alva como o dia; ele, moreno-tentação. E Ela cedera ao convite ao pecado. Caminharam até a casa do Outro.


No elevador aconteceu um abraço – “Amiga eterna, sempre nos ajudaremos na faculdade?” – e algo molhou o pescoço dEla. Silêncio no apartamento do Outro: todos dormiam, menos suas intenções. Respirando o ar que saía das narinas dele, outro abraço pediu para acontecer. Duas mãos seguiam das costas em direção caudal – uma dEla, e a outro d’Outro. Não havia mais volta, seus corpos se roçariam até que um deles (ou ambos) perdessem o fôlego. Naquela noite de sexta duas crianças brincaram de fazer amor.


A Claridade veio de mãos dadas com a Responsabilidade. Para cumprir a promessa de silêncio deveria partir imediatamente! Ao passar em frente a casa dEle (Ele e o Outro eram vizinhos – que ironia) Ela experimenta o torvelinho da ressaca moral; provavelmente Ele dormia com os anjos, e coçaria sua testa mais tarde, não em reflexo ao pousar de um díptero, mas pela noite em claro daquela que Ele chama de Meu Amor.


Ruborizada, afasta-se em direção ao banco da praia. Quis dar um mergulho, roupa e tudo, para deixar ali as proas líquidas da noite anterior, mas não o fez: o mar estava tão sujo quanto a moral de Ela. Contentou-se em voltar pra casa, pé na areia, lentamente, bela e solitária como a Lua, para mais um dia que se inicia; melhor seria se fosse noite.


Bom descanso, Dama da Esbórnia!