quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Fugere Brasiliam



fugir
vti e vint  (lat fugere)
1. Pôr-se em fuga; afastar-se rapidamente para evitar perigo, incômodo ou alguém;
2. Retirar em debandada;
3. Ir-se afastando, ir-se perdendo de vista;

despatriado
adj (des+pátria+ado)
1. Expulso da pátria; expatriado, exilado.
2. Que não tem pátria: apátrida.

desilusão
sf (des+ilusão)
1. Efeito de desiludir, desengano
2. Perda de ilusão;



“Eu fui aquele que andou
sessenta léguas num dia
para ver se breganhava
tristeza por alegria.”



Já de volta ao Brasil, devidamente descansada da viagem, depois de tudo que vivi na última semana, me coloquei a pensar. E conversei com pessoas queridas. E repensei. E ainda estou pensando, mas hei de colocar as ideias parciais aqui antes que me perca nos sonhos ou as perca à realidade.

A vida fora do Brasil é uma vida boa. Mesmo diante da crise é bem vivida, melhor que aqui, segundo critérios objetivos meus como educação (estudada), educação (aprendida através do exemplo), estímulo ao lazer e oportunidades de trabalho. Na decadente Argentina, por exemplo, quase todos sentados num pub ou restaurante, durante o dia, liam seus livros ou jornais numa paz e concentração invejáveis. Lá há o estímulo à boa gastronomia, ao passear pelos parques com a família nos feriados, ao uso da bicicleta como meio de locomoção. Por onde olhava havia sempre um movimento, rítmico, sem o compasso apressado a qual infelizmente me acostumei. Um dinamismo de vida, não apenas existência.

Ao voltar ao meu país me deparei com preços absurdos de coisas simples sobretaxadas, a cultura da lei de Gérson, um clima que agride, um crime que agride. Não é um sentimento convidativo, aconchegante, como o retornar à casa dos pais. Entre país e pais só há a diferença no acento agudo. Ou assim deveria ser. Eventualmente, portanto, concluo, sairei do Brasil, seja para continuar minha missão como médica, seja para recomeçar da base, fênix desapegada e corajosa que sempre fui.

Outro ponto é a valoração das amizades e das boas companhias como meta de vida. Enquanto escrevemos o livro da nossa história conhecemos muitas pessoas. Algumas se tornam nossas colegas (pelos mais diversos motivos, como identificação unilateral, proximidade geográfica, pensamentos similares, mas nem tanto) e raríssimas entram pro patamar de amigas. Aferimo-las pela atemporalidade, não restrição à localidade, pelas características amorfa e quase incondicional da intimidade. Na viagem de agora foi regada uma flor plantada no meu jardim há cerca de 20 anos e que traz suspiros de conforto e proteção a cada encontro. Com ela vieram sua mãe e avó, lírio e margarida, conhecidas à idade similar, mas nunca com tamanha e intensa convivência, mui agradáveis surpresas. À parte desta digressão, ainda estou sob os efeitos terapêuticos do ungüento feito à base de 6 dias de prazeirosa lapidação. E penso!

Ainda no meu terreno fértil, porém de cercas altas e farpadas, existem plantas de tempos variáveis. Algumas com 6 anos de plantio, outras com 9, poucas com mais (ou menos) que este intervalo. A óbvia interpretação deste gráfico imaginário é a abertura escassa do espaço ao plantio, arado, poda e compostagem. Existem menos flores que o espaço suporta pela não permissão, da minha parte, à polinização feita pelas abelhas que passam pelo meu cotidiano. Muitos girassóis-semente deixam de nascer pela ausência d'um punhado de terra. Privo-me da beleza, perfume e cura da flora que poderia estar, mas não o faz, ao alcance de um braço ou abraço.

Agora não mais! Está aberta a temporada de atração às abelhas! E os pensamentos continuam.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Amistad



amizade
sf (lat amicitate)
1. Sentimento de amigo; afeto que liga as pessoas.
2. Reciprocidade de afeto.
3. Benevolência.
4. Amor.

ligação
sf (lat ligatione)
1. Ato ou efeito de ligar.
(...)
 3. Conexão.
(...)
5. Laço, vínculo, relação entre pessoas.

telepatia
sf (tele1+pato5+ia1)
1. Capacidade que se pretende possuam algumas pessoas de transmitir e receber pensamentos a distância, sem que façam uso dos sentidos naturais.

 




Quem me conhece sabe que adoro escrever.  Quem me conhece um pouquinho mais sabe que ontem foi meu aniversário. Mas quem me conhece mesmo, mesmo, mesmo sem nunca termos tido uma conversa tête-à-tête, é a minha amiga, professora de formação, psicanalista de vocação, Cleonice. E todos os anos o ritual é próprio: ela me presenteia com seu ouro negro - que não é o petróleo, mas a tinta de uma pena, ainda que virtualizada, na forma de um texto - que tanto me é caro e raro. Qualidades da nossa amizade de mais de três anos!

Tenho amigos escritores. Alguns, tímidos, o fazem para catapultar seus sentimentos, presos nas próprias correntes tecidas com sua exagerada autocrítica; outros, mais dinâmicos, para cadenciar os pensamentos que correm livres como crianças num parque. Terceiros, e aqui me incluo, redigem como catarse, um antídoto ao vômito das sensações e ao parto das dores de cabeça causadas pelos movimentos repetitivos do martelar de Zeus na confecção inconsciente de histórias subjetivas abstratas. Mas ela, e somente ela, entre os já raros, escreve compulsoriamente como forma de generosidade. Escreve para o outro, àquele que não vemos, o homem de mil faces. E ainda é uma dobradora de palavras! Estas se dobram, se curvam diante daquela, e dançam conforme sua regência.

Com sua anuência eternizo aqui os pedaços de carinho que ela sabe formar tão magnificamente ao agitar os braços empunhando uma varinha mágica invisível (aos outros). Vaidosamente, ei-los!

2014

“Quantas Patricias cabem numa só Patricia? Ela nasceu em mil novecentos e oitenta e sempre e, aparece, assim, de vez em sempre, nem triste, nem contente, apenas gente, apenas sente. Ela sente tudo e não sente nada. Ela vai do oito ao oitenta, mesmo que esteja calada. Ela é silêncio quando tudo é barulho. Ela é tormenta quando tudo é calmaria. Ela é a calmaria que nasce da tormenta. Em um mundo tão confuso, tão intenso, e tão barulhento, ela nos ensina que a poesia nasce do caos e que ela, bem, ela nasce do que pretender nascer. Feliz aniversário, Patricia.”


2013

Queria que o dia tivesse 27 horas, para que, a cada hora, eu pudesse fazer um pequeno texto sobre uma de suas qualidades. Mas seria difícil escolher apenas 27 qualidades, aí eu escolhi a Patricia inteira. É isso, o que eu gosto de você é a sua inteireza. A sua completude (mesmo que, essencialmente, sejamos seres incompletos) é o que faz com que você seja tão especial, tão querida, tão única. Felicidades, Patricia.


2012

Coragem. Não preciso te desejar mais do que isso, porque você não precisa de mais do que isso para seguir em frente quando julgar necessário e para voltar quantos passos a vida te solicitar.

Coragem para arcar com as escolhas que fizer. Coragem para lidar com quem discordar das suas escolhas. Coragem para desistir quando estiver cansada de olhar sempre a mesma janela e encontrar a paisagem intacta, inerte. Coragem para dar vida à paisagem morta. Coragem para criar outras paisagens. Coragem para existir, porque isso já é complicado demais da conta, uai.

Feliz aniversário, Patricia.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Luz na escuridão



alma
sf (lat anima)
1. Nome que exprime vagamente a causa oculta dos movimentos vitais; princípio, força vital, princípio sensitivo e intelectual, vida.
2. Princípio imaterial da vida, do pensamento e da ação.
4. Substância incorpórea, imaterial, invisível, criada por Deus à sua semelhança; fonte e motor de todos os atos humanos.
5. Essa substância, quando separada do corpo.

reencarnação
sf (re+encarnação)
1. Ato ou efeito de reencarnar.
2. Segundo muitas seitas orientais e segundo o espiritismo, fenômeno em que a alma humana, desligada do corpo pela morte, vai, após tempo mais ou menos longo, alojar-se em outro corpo humano.

fim
sm (lat fine)
1. Termo, conclusão, remate.
2. Extremidade, limite de espaço, extensão ou tempo.
3. Intenção, propósito.


“Ela disse adeus, e chorou,
já sem nenhum sinal de amor.
Ela se vestiu, e se olhou;
sem luxo, mas se perfumou.
Lágrimas por ninguém,
só porque, é triste o fim.
Outro amor se acabou.
Ele quis lhe pedir pra ficar;
de nada ia adiantar.
Quis lhe prometer melhorar,
e quem iria acreditar?”


Abriu os olhos. Breu total. Passos se aproximavam.

- Olá! Finalmente alguém para quebrar o silêncio. Estava enlouquecendo por diversos motivos, entre os quais a solidão e o tédio. Como se chama? De onde vem?

- A solidão é sempre uma questão... Bom, eu? Não me lembro. Minha última memória remete a uma cena grotesca. Estava sozinha num campo aberto a olhar o horizonte quando vejo um ponto se aproximar. O ponto tornou-se reta, de reta a curva elíptica. Quando dei por mim estava cercada por uma víbora enorme, em movimentos circulares ao meu redor, como se estivesse atrás da própria cauda, e disse-me, na língua dos homens, mas de modo sibilante, algo como:

"Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu própria. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez, e tu com ela, poeirinha da poeira! Queres isto ainda uma vez e inúmeras vezes?"

- Em pânico, pupilas dilatadas, coração ligeiro, cravei as unhas nas palmas das mãos geladas, detive-me a pensar e, num segundo, ou foram dias?, respondi negativamente. Passado o abalo vejo que não há sentido evolutivo em reviver a mesma existência, uma vez que as aflições já terão trazido suas lições e os sabores da vida já não serão novos, e reitero racionalmente a escolha impulsiva. Retornando ao acontecido, uma vez dito o “não” fui enceguecida por uma luz azul cobalto e a terra se abriu, ou fui içada por braços invisíveis, e caí, ou subi, até aqui. Nada pregresso a este acontecimento faz parte do meu repertório. Qual o seu nome? Como você chegou aqui?

- Da última vez eu estava num ambiente gelado, antibiótico fluindo em minhas veias, ouvindo o estertor da morte. Fechei os olhos para piscar e, quando abri, estava tudo escuro. Este escuro. Vivi desde a adolescência entre pés de nhácamo, plantados em casa. Sempre achei a fisiologia das plantas atraente e me sentia poderoso ao conseguir maximizar sua produção com a química das reações, controlando temperatura, luminosidade e nutrientes do solo. Ver uma semente se transformar numa árvore de metro e meio em poucos meses me trazia a sensação divina! Não sei se você sabe, mas nhácamo é uma fruta suculenta com propriedades encantadas, deixada pelo deus Eagger para que amplifiquemos nosso entendimento.

- Conheço o nhácamo, mas não é um fruto proibido? De onde venho cada gota de orvalho sobre as folhas de um pé de nhácamo é a lágrima de uma mãe cujo filho se perdeu entre as cores e sabores desta drupa.

- Não existe nada mais bonito que o som de fortes determinações colidindo. Comer um fruto que é proibido você não acha irresistível? Nesse fruto está escondido o paraíso, o paraíso! Ele conecta as pessoas e traz leveza ao ambiente, enquanto aprofundamo-nos em nós mesmos e naqueles que nos cercam. As conversas mais edificantes que tive foram alternando nhácamo e risadas. A autoconsciência nos livra das demais necessidades. Como vê, ele cobrou seu preço, e peguei-o conscientemente.

- Discordo, porém compreendo... Agora dize-me!: quem é você? Onde estamos? Por que tenho a impressão de conhecê-lo?

- Fui muitos e não sou ninguém. A única coisa que aprendi, desde que cheguei neste lugar, é a efemeridade da vida. Purgatório, Limbo, Umbral, Grande Vertigem, independente do nome estamos em algum lugar e encontramo-nos nele, entre os desistentes e os insistentes, não por acaso. Não existe acaso, embora não me agrade o conceito de destino. Acredito mais numa verdade intermediária, um caminho no meio das pontas, onde encontram os que querem e os que fazem por onde. Àqueles que desperdiçam seus bens mais preciosos, tempo e energia, as extremidades.

- Você realmente não sente a força dos astros? O influxo de sua proximidade ou distanciamento, o desenho das estrelas cujo ligar traça nossos desígnios? Sem identificar a origem da influência vivi suas consequências. Tive uma ligação planetária, certa vez... Agora me lembro... – E centenas de pirilampos apareceram para dançar no céu, deixando ambos os vultos à mostra - Foi irracional e irrefreável! A mais elaborada razão sucumbia ao magnetismo sem foco.

- Creio somente no mérito da chama interior, a enorme força criativa que todos somos dotados. O homem lida imediatamente apenas com as suas próprias representações, os seus próprios sentimentos e movimentos da vontade. As coisas exteriores têm influência sobre ele apenas na medida em que os ocasionam. Se o destino só existe para cegar a realidade, e se é o destino que as estrelas nos dizem, então devemos destruí-las em si. Ouça a melodia das estrelas esmagando. – Enquanto aponta para o céu os agora milhares de pontos luminosos vão se extinguindo como luzes de velas sufocadas por apagadores. – Aproxima-te! Sinta o fogo cuspido pelo meu coração e que corre através das artérias, esquentando meus impulsos e nervos, e ouça as palavras acaloradas que assolam argumentos alheios, coroando-me sempre a vitória, saibam eles ou não.

- Você... Preciso de um Sol para energizar-me, não um fogaréu pra me queimar. A luz da fogueira é quimérica, fugidia. A dança das suas chamas se faz convidativa e, quando chegamos perto de mais, somos captados pelo hipnotismo das labaredas, e estas cobram nossa pele e carne para arder. Entretidos, quando percebemo-nos, voltamos ao carbono, e os danos feitos são irreparáveis. Aos sobreviventes a tez se recompõe, agora como couro, inelástico, marcado como gado com ferro quente. “Vejam lá os incautos, escondendo suas cicatrizes com sorrisos, infelizes!” dirão novamente, enquanto sentem-se elevados. O Sol, entretanto, é possuidor de uma prodigalidade inimaginável! Independente, caminha em todas as direções, de leste a oeste, com seu sorriso cintilante, e dá abraços suficientemente calorosos aos que se expõem; e as plantas ficam maiores para vê-lo passar; e os jacarés sequer movem-se, boquiabertos, diante da sua grandeza. Quando ele atravessa o frio míngua, a escuridão fica menos densa e as dores suportáveis; as doenças do corpo e da mente diminuem, apavoradas, e vão embora!

- Lembrou de mim, então? Recordou que foste a flor mais bonita do meu jardim? Cultivada com carinho e compostagem, gás carbônico e beijinhos em quantidade ideal? Por muito tempo houve o engulho com as nossas presenças, mas aquele livro findou e podemos recomeçar, ou reescrever. Ambiente novo, brisa nova, amor antigo.

- Eu fui apaixonada por você como jamais imaginei ser capaz e nunca duvidei do seu amor, mas hoje não sei se essa paixão foi por mim. Acho que você foi apaixonado pelo amor que acreditou sentir. E eu? Não tenho nada a ver com isso. É uma pena, mas aconteceu assim. Eu tive todos os sonhos com você e hoje isso virou tristeza. É tão misterioso o nascer das lágrimas... Eu não posso salvar aqueles que já se perderam. Só porque duas pessoas se amam não significa que elas devem ficar juntas e, Deus, como te amei!... Non è possibile!

- Mas, mas, mas... Não, não é! Eu nunca machucarei você novamente. Eu vou protegê-la! Lembra quando estivemos no litoral, com o vento trazendo a maresia, e, sobre aquela grande rocha, limite de dois distritos, vimos a lua e o sol juntos? O sol representa a alma, a lua a mente e a pedra o corpo. Estavam todos alinhados conosco. Estamos ligados, jurados, por isso a sensação de familiaridade. Uma pequena onda, gerada por uma pedrinha, um dia pode gerar uma grande onda. We can work it out! Só o tempo dirá se estou certo ou errado e temos todo o tempo do universo.

- A vontade, se não quer, não cede, é como a chama ardente que se eleva com mais força quanto mais se tenta abafá-la. Cedi. Desisti de você. Desisti de tentar. Nos vemos em outra vida. – E sentiu o peso de uma mão em seu ombro direito. Ao olhar para o lado inicialmente viu dois olhos azuis que tomaram o corpo de um senhor com barba, cabelos acinzentados, rosto sereno e roupa clara. Teve a impressão de que uma luz branca brilhava atrás da figura e das vestes do mensageiro, como se viesse através de um véu tênue. Reconfortou-se ao reconhecê-lo – Vamos?! - e, juntos, brilharam até completarem uma constelação.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Duas vezes o dois


estrela
Substantivo feminino
[Do lat Stella]
1. Astr Astro que tem luz própria, cintilante, e é da mesma natureza do Sol, parecendo sempre fixo no firmamento.
2. Qualquer astro.
3. Destino, sorte.
(...)
5. Pessoa a quem se quer muito.


ósculo
Substantivo masculino
[Do lat osculu]
1. O mesmo que beijo.
2. Beijo de paz e amizade.



Bom dia, Beija-flor!

Escrevo esta carta para não ser lida por ti, com tinta invisível (só os que me amam conseguem lê-la!) e pena própria, que não vôo mais.

Sabe o que é, Beija-flor? Os verbos insistem na inconstância e o que “é” já “foi”, certamente, entretanto vez ou outra acorda hora como “será”, hora “seria”, e quando peço por “fôssemos” ele me responde com “formos”. Vá para rua! Vá para fora!, mas, gozador, o verbo pega o “fora”, muda a entonação e veste de “seja”, imperativo, e ri enquanto zango-me, e diz que do “ser” ao “saber” só faltam duas letras que insisto imaginar. Justo eu, ora essa, que sequer consigo reproduzir o Abaporu em traços infantis ou criar um conto de duas laudas.

Os lugares também estão de zombaria comigo, acredita? Os que fomos juntos perguntam-me de ti e questionam o motivo das minhas mãos vazias; os que vou sozinha vêem sua sombra na minha e comentam, desinteressadamente, sobre um casal que certa vez foi feliz e assim seria se... Não os deixo findar e saio, Beija-flor, porque eles não entendem que água não fura pedra, o  sol que dá vida também queima e forças iguais, mas opostas, se anulam. Descobri, entretanto, que a cessação não é permanente, visto esta carta, que insiste em se escrever.

Ah, Beija-flor, a Terra desgirou e girassol agora segue a Lua, gato foi visto ladrando e Newton caiu na cabeça da maçã. A única coisa que roda em sentido horário, e bate junto com o relógio da igreja matriz, é meu coração, mas ele  deu para carrear sangue branco, leitoso, que as cores foram embora contigo, gota a gota, num óstio que não cicatriza. Engraçado, né? Anotarei aqui um apontamento sobre ir ao médico.

Ah, ia esquecendo-me! Espalhou-se na praça: as estrelas contaram para as águas, que contaram para os peixes, que contaram para os pássaros, que cantaram para mim: duas constelações novas se entrelaçaram, a Figa e a Fuga, astros menores. E enquanto aquela ascendia fulgurante esta perdia terreno e planetas, e o tempo não era bom com ela. Nem com a primeira, se quer saber, porque sua nebulosa, baseada em esperança, era um gato de Schrödinger e estava viva e morta. Em prol da sua concretude Andrômeda ofereceu-se em sacrifício, Sagitário dispôs sua seta e até a discreta Antares opinou que, então, na ausência de um consenso, melhor era tudo se acabar. Nada disso adianta, Beija-flor! Antares está certa, mas, ah, se fosse fácil assim... Oxalá Astrologia fosse Matemática!

Relendo-me agora não tenho mais certeza sobre a invisibilidade desta epístola. Ou seria este meu desejo? Duas vezes o dois é vinte e dois ou fevereiro? Não sei, e para não confundir-me além da sanidade e ir a galope à psicose poupo-me a internação na Casa Verde de Itaguaí e findo por aqui. Minhas últimas palavras para ti, pelo menos por hoje, ou esta hora, certamente nesta carta, ei-las:

“Parabéns, meu amor!”

Ósculos!

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Eu escolhi ficar!



escolher
[Do lat. Excolligere]
1. Separar segundo qualidade, tamanho, cor etc.; selecionar, classificar.
2. Separar impurezas ou produto de má qualidade de.
3. Dar preferência a, entre coisas da mesma espécie: Escolher um vestido.
4. Eleger, nomear:
5. Optar

ficar
[Do lat vulg *figicare, freq de figere]
1. Conservar-se em algum lugar; estacionar.
2. Permanecer em tal ou qual situação ou disposição de espírito
3. Não dar mais um passo; deter-se
4. Estar situado


Eu escolhi ficar!



“É abrindo a gaiola que o canário vê que não quer sair”


Olha, nunca fui de fugir da raia. Pelo contrário: com raras exceções (a maioria amorosa), sempre me joguei em tudo na vida. Acredito piamente que o que tem que ser feito tem que ser feito, independente da minha vontade, e sempre que tentei escapar dessas situações fui pega pelos ombros pelo Desígnio e colocada novamente na trilha.  

Aprendi à força o “amor fati”, que significa, em latim, “amor ao fado/destino”, e que de um caminho que é nosso não temos subterfúgio. Obviamente poucas das nossas sendas são estas rijas, e existe o livre arbítrio para a imensa maioria das estradas que marchamos. Resumindo: acredito que, se chegarmos a uma bifurcação, podemos escolher livremente entre ir pela direita ou pela esquerda, mas se tivermos, por algum motivo divino, kármico, evolutivo, ou nenhum desses, que ir pela esquerda, não adianta fugirmos para a direita que sempre haverá uma viela, volta, atalho ou placa enorme colocando-nos à esquerda para que passemos invariavelmente por certas situações. Minha vida tem seguido esta regra, à risca, por tempo demais para que eu acredite em casualidade ou sorte.

Ao ser aprovada, contra as minhas expectativas, num suado concurso de residência médica em São Paulo, me encontrei num dilema. Já me mudei inúmeras vezes, sem grandes receios, de cidade, de casa, de decisões, de status de relacionamento, de universidade, de planos para o futuro, de gostos pessoais... Mas desta vez senti que não deveria. Não foi um pressentimento celestial; não ouvi a voz de Deus ou algo do tipo, a escolha foi bem racional, inclusive, e um tanto intuitiva. Os fati anteriores foram muito mais inexplicáveis, contundentes e irrecusáveis, o que torna esta opção apenas uma oportunidade, uma reflexão.

Apesar de me sentir um tanto solitária, caseirinha, eventualmente ter meus dias melancólicos, estar a mais de mil quilômetros do meu núcleo familiar primário e vez ou outra molhar o travesseiro com lágrimas e saudade... Eu escolhi ficar! Ficar para ver dar certo no Rio de Janeiro, onde estou há sete anos; ficar para estreitar meus laços de amizade, crescer como pessoa e mulher, e aqui arraigar minha vida; ficar para a informalidade e benevolência guanabarinas, raridades no meu estado de origem; ficar para ter como quintal a praia e perfume a maresia, por menos que faça usufruto nos dias escaldantes. Ficar, afinal, por opção.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Mulher rendera



renda
Substantivo feminino
1. Obra de malha feita com fio de linha, seda, ouro ou prata, apresentando desenhos mais ou menos caprichosos, que serve para guarnecer peças de vestuário, roupas de cama

alquimia
Substantivo feminino
[Do ár al-kîmiyâ, do gr khymeía, mistura de líquidos]
1. Química da Idade Média.
2. Arte que procurava descobrir a pedra filosofal, com que transformariam em ouro outras substâncias, e a panaceia universal.

eterno
Adjetivo
[Do lat aeternu]
1. Que não tem princípio nem fim.
2. Que teve princípio, mas não terá fim.
3. De duração indefinida.
4. Que se faz ou se repete amiúde.
5. Imortalizado, célebre


“Olê muié rendera
Olê muié rendá
Tu me ensina a fazê renda
Que eu te ensino a namorá”


Oculta sob pedras, tijolos e temores, onde o deserto, o mar e o céu dão as mãos, estava uma fidalga de tez lívida, cabelos fulvos e mãos talentosas. Sua virtude era a criação, e com os dedos, que bailavam, tecia e bordava com tamanha delicadeza que as próprias ninfas, dos bosques adjacentes, se apoiavam sobre os cotovelos nas janelas de suas torres para vê-la coser. Tudo que findava ganhava vida. As estrelas das suas bandeiras pareciam colhidas da noite, os cavalos dos seus brasões relinchavam, seus tapetes eram os mais felpudos e suas rendas as mais firmes e leves já experimentadas. Diziam ter aprendido com as Moiras; os mais ousados, ser filha d’alguma; os insanos, ser uma delas.

Em seu tempo livre tinha apreço por passear nas brenhas, onde conversava com sátiros e mênades e banhava-se no rio de Heráclito. Certo dia, como por uma peça, o Vento balançou galhos e fê-la vista, semi vestida, aos olhos de um jovem alquimista que ali estava à procura de ingredientes. Embasbacado – uau! – aproximou-se, ofertando-lhe a panacéia. Beberam dela. Beberam de si mesmos. Durante a alvorada murmurou-lhe um encantamento e viu seus olhos cerrando-se mais. Partiu vendo os cabelos dele, negros como as trevas, que davam lugar à coroa de Hélio, serem trançados pelos dedos do mesmo Vento pândego que promovera o encontro.

Na manhã seguinte, enquanto sua roca girava, um bem-te-vi trilou-lhe que fosse à janela. Do alto da torre mais alta viu uma pequena nuvem de poeira; forçou os olhos e conseguiu vislumbrar não só um cavalo, como seu cavaleiro, o alquimista. Segura de sua intatilidade voltou a fiar. Seu castelo era cercado por baluartes, casamatas, barbaças, cadafalsos, fossos e pontes levadiças. Seus portões eram grossos, maciços e em suas muralhas haviam fenestras para o disparo de flechas. Apesar de toda tentativa de aproximação ser rechaçada, o cerco foi montado.

Passaram-se dois meses – ou seriam anos? – e cada empecilho era vencido. O alquimista entendia de ilusões e manejava bem o fogo; cozia poções e porções, curava-se dos ferimentos como que por bruxaria, e era um mestre estrategista. Por vezes ela achou que vira mais de um homem tentando furar o bloqueio e questionou-se sobre a veracidade do mito dos homúnculos. Aberto o último portal por um aríete invisível, feito de perseverança e cádmio, encontraram-se no enorme pátio, ela rendida, ele com um girassol na mão.

Por um período, ou dois, foram felizes juntos. Ela era vista assoviando canções que ainda nem existiam, num radiar que fazia ciúme às filhas bastardas do Sol, enquanto as flores do seu jardim nasciam com mais pétalas e faziam pequenas reverências quando ela passava. Nesta temporada seus feitos tornaram-se ainda mais grandiosos e deles fulgurava uma luz sobre-humana. Até os animais ficaram mais férteis e muitos deles aprenderam, da língua dos homens, palavras belas para bendizê-la.

Entrementes, um dia a brisa soprou gelada e os sorrisos fugiam como animais de uma queimada. Algo funesto crescia no alquimista, e ele tomava seu xarope com mais freqüência, e escondia as ervas com que fazia supostos emplastros, e dizia caçar quando ia à floresta procurar cogumelos para entibiar-se. Suas rendas, percebeu, estavam frágeis e sua roca quebrou; confundia-se nas tranças e seus dedos ficaram abobalhados. Freqüentemente esquecia cosidos usuais e, sem saber o pretexto, matava a sede com lágrimas próprias. As mênades riam dela, enquanto as ninfas pediam intervenção divina.

Certo dia recebeu de um anão itinerante, com quem comerciara dois tapetes e algumas malhas, um anel forjado com maestria que possuía como solitário uma pedra deveras incomum. Naquela tarde, ao conversar com seu consorte em seu aposento, no topo da torre mais alta, reparou, por trás do sotaque estrangeiro e da voz, agora pastosa, que ele já não falava mais com a fluência de antes. Sua voz, melodiosa e doce, que fazia com que tudo que fosse dito parecesse sábio e razoável, tornara-se rude e agressiva, e suas palavras, mesmo que graciosas, já não faziam sentido.

Seus olhos, midriáticos, brilhavam como uma chama verde lodosa; ela olhou muito fundo – o que foi sua ruína - e encontrou muita ganância somada a intenções dúbias. Temeu e tremeu. Ao tomá-la pela mão o alquimista reconheceu o antaglifo, pedra cuja faculdade era a de fazer seu portador não se impressionar com nada, e percebeu que a fascinação estava quebrada. Nenhuma de suas ilusões poderia opor-se ao fim ululante. Aquela noite seria o marco final daquela Era.

Ela ouvira falar na chama verde, a chama eterna, desgraça viva, consciente e determinada de seus objetivos, que só acaba quando consome tudo que a cerca, tendo como vítima final seu hospedeiro. Era um traço inato, não havia subterfúgio! Desesperançada, aproveitou um segundo de oportunidade, desvencilhou-se do alquímico e jogou-se da janela da torre. Não houve estampido. No lugar ouviu-se o bater de asas e uma ave com plumagem amadeirada foi vista pairando em direção à floresta. Enquanto planava, piava “foi... foi... foi...”. As ninfas foram ouvidas! Assim nasceu o urutau.

sábado, 18 de janeiro de 2014

Recordar é sofrer

memória
[Do lat memoria]
 Substantivo feminino 
1. Faculdade de conservar ou readquirir ideias ou imagens.  
2. Lembrança, reminiscência

sofrer
[Do lat sufferere, corr de sufferre]
Verbo transitivo indireto e verbo intransitivo
1. Padecer dores físicas ou morais: 
2. Padecer com paciência
Verbo transitivo direto
3. Aguentar, suportar, tolerar
4. Experimentar, receber: 


Há quase um ano sem passar aqui como escritora, apenas curio’saudosa, refaço o caminho para rememorar meus dedos do papel que lhos cabe.

Depois de um tempo de estiagem achei que o poço havia secado; temi que tivesse, enfim, acabado de tomar completamente a sopa de letrinhas ao invés de brincar perpetuamente com estas com os indicadores. Minha folha de papel continuava terrivelmente branca enquanto a mão pendia para o lado, inerte, com os dedos para cima, aranha defunta que findara sua confecção. Acabara o combustível, deixando-me na ignota estrada do silêncio? Onde estavam as pequenezas sarapintadas que via com olhos molhados?

Escrevo hoje para molhar os lábios ressequidos, aguar a semente do que antes fora um cedro-rosa, esculpido ao toco.  Redijo para cortar-me com o papel e fazer escorrer pelo polegar, que firma a caneta, o sangue escarlate que serve de tinta e lampejo. Hoje as palavras são d’outro, as próximas (e aos próximos) as minhas. Deixo-vos um poema cruento.


 Essa noite

Pablo Neruda
 
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe".
O vento da noite gira no céu e canta.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a e por vezes ela também me amou.
Em noites como esta tive-a em meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.

Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.
Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.

Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
A minha alma não se contenta com havê-la perdido.
Como para chegá-la a mim o meu olhar procura-a.
O meu coração procura-a, ela não está comigo.

A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores.
Nós dois, os de então, já não somos os mesmos.
Já não a amo, é verdade, mas tanto que a amei.
Esta voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido.

De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
A voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos.
Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda.
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento.

Porque em noites como esta tive-a em meus braços,
a minha alma não se contenta por havê-la perdido.
Embora seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.