quinta-feira, 16 de março de 2017

Vou-me embora pra Pasárgada

desabafo
substantivo masculino
1. Manifestação de sentimentos longamente contidos; desafogo:

empatia
substantivo feminino
1.  Habilidade de imaginar-se no lugar de outra pessoa.
2.  Compreensão dos sentimentos, desejos, ideias e ações de outrem.

desistir
verbo transitivo indireto e verbo intransitivo
1. Não continuar em seu propósito; renunciar: 



Vou-me embora pra Pasárgada





Você faz de tudo, tudo!, para salvar a vida de uma criança com insuficiência respiratória aguda que teve parada cardiorrespiratória. 
Intuba, massageia, faz adrenalina. 
Infelizmente não dá certo. 
O anjinho falece.
Você fala com a família, com muito cuidado, pois a mãe da criança está grávida da próxima, aguarda o tempo de assimilação da notícia (que não é fácil dar nem receber), vai colher a história com os últimos médicos que atenderam o bebê, para ver onde poderia ser feita a medida salvadora de vida.
Tudo isso leva tempo.
Tudo na vida leva tempo.
E, neste tempo, da sala da assistente social, dá para ouvir gritos de um casal de idosos.
Eles querem que a filha seja atendida imediatamente.
Ela está com tosse e resfriado há 4 dias.
Quatro dias.
Atendimento imediato!
Antes de resolvermos a maior das tragédias.
A morte de um bebê.
Durante o atendimento a avó já começa mal.
Já deu amoxicilina em casa sem orientação médica.
Depois pede xarope pra tosse.
Não existe xarope pra tosse.
Existe hidratação oral pra tosse.
Existe lavagem nasal pra tosse.
Existe nebulização com soro pra tosse.
Ela sai indignada.
Me chama de veterinária.
Hoje recebo uma Ouvidoria pedindo explicações.
Sério, não quero mais viver neste mundo, com esse tipo de gente.
É por isso que vou pro Canadá.
Lidar com números.
Eles não são insensíveis ao sofrimento alheio.
Eles não me chamam de Veterinária.
Eu, que fiz tudo para salvar uma vida.
E parte da minha foi embora com a morte do guri.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

John Doe

resistência
substantivo feminino
1. Ato ou efeito de resistir.
2. Capacidade que uma força tem de se opor a outra.
(...)
4. Defesa contra uma investida.
5. Recusa do que é considerado contrário ao interesse próprio.
6. Mecanismo de defesa utilizado pelo analisando para recusar-se a não tomar consciência de suas motivações, dificultando o retorno aos traumas vivenciados.




suicidar-se
verbo pronominal
1. Pôr termo à própria vida; cometer suicídio, matar-se.

casar
verbo pronominal1. Unir-se pelos laços matrimoniais; embirar.
(...)5. Agrupar(-se), em pares, por certas afinidades:


John Doe

Ela olha o vestido meticulosamente branco e passado, como se branco fosse seu passado e disso dependesse seu presente. Os sapatos estão ao lado dos cactos, contra a luz, na janela. Suspira e lembra-se do primeiro encontro deles, num pub irlandês, expectativas de mais para um rapaz com roupas de marca de menos. Cercada de amigas e risadas abre uma pequena caixa marrom com uma joia, que fora da sua mãe, ou da mãe dela, ou da mãe de alguém, ou de mãe nenhuma. Não conseguiu ouvir direito. Silencioso também foi seu ganido, desesperado, que passou incólume.

Ele afivela o cinto com dificuldade, abotoa as mangas da camisa larga e aceita que nem no seu casamento as vestes cairão bem. Os trajes de tamanho normal ficam apertados e os um pouco maiores ficam largos demais. Sempre se manteve neste limbo, solitário, até encontrá-La. Nunca foi um garoto magro, pelo contrário, esse menino não come nada e tem esse corpo, ouvia seu médico a cada consulta. Ainda assim, com sua insegurança escondida pelos vultos da internet, conseguiu um primeiro encontro e, embora indo sem acreditar, foi acreditado e culminou no dia de hoje.

Ela pinta de preto os olhos, porque Ele gosta, talvez, e passa rímel nos cílios que não são seus. Suas bochechas já se encontram exageradamente rosadas e os cachos, forjados no calor, com spray. O vermelho faz-se presente na boca e nas mãos. Fecha o vestido com ajuda da irmã, mais velha e mais bem resolvida, calça os sapatos, olha-se no espelho, sorri, insegura, inspira profundamente e desce as escadas do hotel.

Ele arruma a gola da camisa, acerta o nó na gravata, ajeita a do pai que, descrente até aquele instante, não conseguia parar de tremer as mãos tão destras de padeiro. Amarra os sapatos, pretos e polidos, coloca as alianças no bolso e desce as escadas do hotel.

Na igreja os poucos amigos estão amontoados, com vestimentas recicladas e o celular em riste. Ela chega acompanhada do pai, mãos dadas, segurando o choro. Uma hora se passa, os burburinhos vão ficando altos. E ele? Deitado com o terno sujo de sangue, após o estampido da arma contra o peito, num banheiro do posto em que parou para aliviar-se. Aliviou-se! Não suportou o amor.