domingo, 16 de outubro de 2011

La vita così com'è

desejo
sm 
1. desiderio.  
2. voglia, volontà. 
(...)
 5. piacere.

preferência
sf 
1. preferenza, predilezione.


Sacolejando numa carruagem cabriolet chegava àquela estância uma patricia, sem pai ou pátria, nobre pela própria natureza. Adentrava àquela vila sem referencial algum, exceto por um estimado amigo, O Coroado, que enviava-lhe, com uma disciplina quase militar, extensas cartas diárias escritas a pena e suor.

Sua chegada na pequena cidade fora notícia, afinal, forasteiros àquela estação eram deveras incomuns, e nEla convergiam todos os olhares, dos mais insignes aos nada opulentos, não por sua beleza, mediana, mas por sua confiança e independência. Não era de bom tom uma mulher andar sozinha por onde quer que fosse, como Ela acostumara-se a fazer, portanto O Coroado tomou-lhe a mão e guiou-a pelos caminhos eminentes locais que Ela conhecia somente pelos longos relatos.

Passado algum tempo, porém, Ela sentia-se fatigada e enfadada, um tanto ou quanto incompleta. Necessitava conhecer o outro lado da Verdade e, em segredo, começou a andar entre os criados. Estes sim eram sortidos e sortudos, com seu estilo de vida munificente e lúbrico; seguiam regras próprias e eram imunes aos estatutos dos deuses e dos anjos, livres na fé, escravos apenas da vontade de homens gigantes, a dita nobreza vigente.

Foi neste magote que Ela, camuflada, enquanto O Coroado dormia e supunha que ela fazia o mesmo sob seu lençol de cetim, conheceu virtuosos homens que inicialmente cortejaram-na, entretanto, depois, aceitaram-na como um dos seus pela reprodução, por parte dEla, do seus comportamentos. Dentre todos um chamava-lhe especialmente a atenção. Seu crânio era um pouco maior que o convencional e seus olhos, fundos como a madrugada, tentavam frustradamente esconder-nos seu prognatismo mandibular. Seus braços faziam-se ligeiramente mais compridos do que o daqueles que conhecia, eram lar de músculos definidíssimos que remetiam a um trabalhador de esforço e valoroso e era deveras hirsuto em membros e tórax. De longe lembrava um Hominoidea, nem alto nem baixo, com marcha própria e de pêlos nigérrimos como o piche, apesar da pele ser da cor da coalhada. Guglielmo era seu nome e do sul seu acento.

De lívida Ela passou a luzente, suas pernas, antes irrequietas, sossegaram e os sorrisos saíam fartos dos seus lábios rosados como bolhas num banho de espuma. O Coroado, suspeitoso, mandou observarem-na e suas escapulidas foram conhecidas e cerceadas. Havia de contentar-se apenas com passeios dentro dos limites de suas terras, que não eram poucas. Numa tarde, ao descer ao cercado dos animais, Ela avistou um vulto conhecido, nunca antes vislumbrado pelas propriedades do Seu Coroado. Era Gugli! Mesmerizada, Ela aproximou-se.

- Benvenuto, semplice contadino.* - e conteve o impulso de correr para abraçá-lo.

*os diálogos, a partir deste, serão traduzidos, para plena compreensão dos leitores.

- Olá, senhora. No que posso lhe ser útil? – disse Gugli com um sorriso no canto da boca, tão peculiar às noites de boemia que partilharam juntos.

- Sela-me um cavalo e flane comigo. Existem muitos bosques e trilhas, sendas e milhas para conhecer. Esta velha terra m’é nova aos olhos e seu povo ainda não é meu povo. Sê meu cicerone e tornemo-nos parte do todo.

- Sim, senhora. Levar-te-ei a veredas onde vossa mercê jamais sonhaste chegar.

Selou-lhe um cavalo, outro a si próprio, ganharam terreno e fizeram desta novidade um hábito. No começo ambos mantinham certa distância, com Gugli montando ligeiramente à sua frente para protegê-la de eventuais riscos. Aos poucos, durante os passeios, suas montarias (e seus olhares de concupiscência) foram aproximando-se até que um e outro, enfim, seguiam às trilhas de mãos dadas e, por diversas vezes, cavalgaram na mesma sela.

Os períodos passavam e Ela, cada vez mais envolta neste sentimento extasiante, desejava despender mais e mais tempo com seu consorte. Procurava-o sempre entre as baias, onde Gugli constantemente fazia-se presente, descamisado, nunca imberbe, escovando os cavalos ou trocando o feno sujo de estrume por outro de recém fenação. Este recebia-a sempre sorrindo, de braços abertos, pronto a sufocá-la contra seu peito.

Numa das tardes de primavera Ela novamente esgueirava-se para dentro da cavalariça, porém não foi recepcionada com o rotineiro beijo e abraço do seu amásio. Este ajudara a transportar para um dos boxes uma antiga, entretanto ainda nova, égua que pertencera à fazenda dO Coroado e fora readquirida num leilão. Gugli encontrava-se no compartimento da Velhinha, a égua, a escová-la com tanto carinho e dedicação que sequer reparara em Ela ou cedia-lhe muito de sua atenção. A partir daquele dia o peão seria visto somente na companhia da égua Velhinha, a pé ou a galope, estáticos ou passeando pelos pastos. Por vezes Ela deparava-se com Gugli amando Velhinha de modo poético, outras de modo carnal, e retrogredia enojada.

Num dos raros momentos em que Ela encontrou o cavaleiro sem a companhia de sua besta, perguntou-lhe:

- Ó, Primitivo homem, por que escolheste ela em detrimento de mim?  Tem esta égua alguma graça que eu não possua?

- Minha patrícia senhora, adoro tua companhia como a de uma irmã e regozijo-me contigo, mas vossa mercê não possui as ancas de parideira que tanto aprecio, ou a crina macia e sempre escovada da minha Velhinha. Nesta posso cavalgar como se fosse o inverso, sempre que sentir necessidades, porque ela não nega nada a mim, treinada que é nas artes animalescas.Eventualmente, quando sinto-me tentado à rudeza do coito, seguro suas crinas, um tanto rubras e perfumadas como gerânios vermelhos, e ponho-lhe com vontade, sem que esta refute ou reclame, pelo contrário.

- Compreendo suas necessidades de varão, Gugli, mas a égua, Velhinha, lê poesias para ti, como eu faço? Ela decifra-te o mistério das estrelas e conta histórias da época em que havia mais de um Deus, e que eles moravam no Olimpo e andavam entre os homens? Ela, a meu exemplo, te faz entender como agem os seres humanos e suas intenções ocultas, e o que eles dizem sem abrir a boca ou intentam o impronunciável somente com o olhar?

- Não, minha dama, a predileta dentre todas as patricias. Mas com a Velhinha posso passar o dia em sua cocheira, deitado ao seu lado, no feno, enrolando meus dedos em sua crina e proferindo amenidades enquanto ela me olha, silente e indolente, a concordar com tudo com seu sorriso universal. Não articula mais que dois ou três relinchos e, quando o faz, fa-lo em um tom baixo e suave, logo move sua cabeça e, com o olor de sua crina, injeta em minhas narinas mais de seu feromônio. Pouco resisto e já vejo-me dentro dela novamente.

- Acha-a de mais fino trato que eu, Gugli?

- Novamente a resposta é negativa, minha querida. Velhinha apenas é de mais fácil trato que vossa mercê. Ela contenta-se com sua mistura de feno, grama e leguminosas, as quais eu partilho, por condescendência. Suas ferraduras são de fácil forja e troco-as enquanto ela fica paradinha, como uma donzela a experimentar seu sapatinho de cristal. Inclusive tenho dois pares delas sempre comigo, caso haja necessidades ou imprevistos. Todo arreio lhe cai bem e, por mais singelo que seja, a cada trote e sacudidela da cauda – lançando mais feromônios no ar - torna-se mais fêmea aos meus olhos.

- Está certo... Sua escolha está feita, e seu destino traçado a trinta. Passar bem! – e saiu a passos largos para não desabar em lágrimas na frente do seu amado.

Então, Guglielmo, tempos depois, inesperadamente, numa queda foi ao chão, e a égua, danada égua, correu das suas rédeas e sela para o mundo selvagem dos cavalos garanhões. Gugli levantou-se, espanou as gramíneas do seu corpo, lavou seus cortes no rio de Heráclito, entretanto suas precisões fizeram-no trocar Velhinha por uma égua baia, das ordinárias a mais. E o padrão manteve-se...

E Ela? Continua a contar estrelas e histórias... Loba solitária que é.

sábado, 15 de outubro de 2011

Ah, se eu fosse um padre...

problema
sm (gr próblema)
1. Questão levantada para inquirição, consideração, discussão, decisão ou solução
(...)
5. Tema cuja solução ou decisão requer considerável meditação ou habilidade.
6. Qualquer assunto ou questão que envolve dúvida, incerteza ou dificuldade.

poema
sm (gr poíema)
1. Obra em verso.
2. Composição poética do gênero épico, mais ou menos extensa e com enredo.
3. Epopéia.
4. Obra em prosa em que há ficção e estilo poético.
5. Assunto ou coisa digna de ser cantada em verso.

adoçar
(a1+doce+ar2) vtd
1. Tornar doce: Adoçar o fel amargo da existência.
(...)
3. Mitigar o sofrimento de: A música adoça a tristeza. Adoçar alguém com presentes.
4. Atenuar o efeito de: Adoçar a lei, as fadigas. Adoçou a canseira com um banho.
5. Abrandar, suavizar: Adoçar o caráter, o natural.


Um dos axiomas da vida é: “todo mundo tem problemas”. Comigo não seria diferente, não é mesmo? O maior e mais torturante deles, no momento, relaciona-se à Universidade e a proximidade do seu término. Não entrarei em detalhes aqui, porque, né, não convém, mas procurei uma querida professora, que já me socorrera numa crise pregressa, para aconselhar-me sobre como proceder diante da realidade ululante. Conversamos por aproximadamente duas horas, nas quais me emocionei muito, trocamos confidências, abraçamo-nos e expurguei todos os meus demônios interiores. Inclusive citei meu gosto pela escrita amadora e a existência deste blog, o que fez os olhos da Professora brilharem.

Durante toda a conversa, que aconteceu no horário de almoço dos professores, supus que estávamos sozinhas numa das salinhas do Departamento, cujas paredes são vazadas. Ledo e feliz engano! Assim que despedi-me da professora, que remira minhas mazelas, e entrei no corredor do quarto andar do Hospital Universitário, reparei com a visão periférica que alguém tentava me alcançar e me chamava pelo nome.

-Patricia... Patricia...
-Oi... Professor?!
- Minha querida, nunca desista dos seus sonhos. Os problemas vem e vão e devemos ser capazes de enfrentá-los. Sê feliz! Continue escrevendo! Receba este poema e uma paçoca para adoçar a vida.

E ele entregou-me uma poesia linda (abaixo), em folha impressa, com pequenos rasgos, com marcas de fitas adesivas tiradas às pressas. Provavelmente a trova estava pregada na parede da sua sala por um tempo razoável, o que eleva ainda mais o valor simbólico do presente e da atitude. Obrigada, Professor Porphirio José Soares Filho, por ser um agente transformador positivo das pequenas cabeças dos estudantes universitários. Você faz a diferença!

Apreciem:


Se eu fosse um padre
Mário Quintana

Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
— muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!

Porque a poesia purifica a alma
...e um belo poema — ainda que de Deus se aparte —
um belo poema sempre leva a Deus!