sábado, 18 de janeiro de 2014

Recordar é sofrer

memória
[Do lat memoria]
 Substantivo feminino 
1. Faculdade de conservar ou readquirir ideias ou imagens.  
2. Lembrança, reminiscência

sofrer
[Do lat sufferere, corr de sufferre]
Verbo transitivo indireto e verbo intransitivo
1. Padecer dores físicas ou morais: 
2. Padecer com paciência
Verbo transitivo direto
3. Aguentar, suportar, tolerar
4. Experimentar, receber: 


Há quase um ano sem passar aqui como escritora, apenas curio’saudosa, refaço o caminho para rememorar meus dedos do papel que lhos cabe.

Depois de um tempo de estiagem achei que o poço havia secado; temi que tivesse, enfim, acabado de tomar completamente a sopa de letrinhas ao invés de brincar perpetuamente com estas com os indicadores. Minha folha de papel continuava terrivelmente branca enquanto a mão pendia para o lado, inerte, com os dedos para cima, aranha defunta que findara sua confecção. Acabara o combustível, deixando-me na ignota estrada do silêncio? Onde estavam as pequenezas sarapintadas que via com olhos molhados?

Escrevo hoje para molhar os lábios ressequidos, aguar a semente do que antes fora um cedro-rosa, esculpido ao toco.  Redijo para cortar-me com o papel e fazer escorrer pelo polegar, que firma a caneta, o sangue escarlate que serve de tinta e lampejo. Hoje as palavras são d’outro, as próximas (e aos próximos) as minhas. Deixo-vos um poema cruento.


 Essa noite

Pablo Neruda
 
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe".
O vento da noite gira no céu e canta.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a e por vezes ela também me amou.
Em noites como esta tive-a em meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.

Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.
Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.

Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
A minha alma não se contenta com havê-la perdido.
Como para chegá-la a mim o meu olhar procura-a.
O meu coração procura-a, ela não está comigo.

A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores.
Nós dois, os de então, já não somos os mesmos.
Já não a amo, é verdade, mas tanto que a amei.
Esta voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido.

De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
A voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos.
Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda.
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento.

Porque em noites como esta tive-a em meus braços,
a minha alma não se contenta por havê-la perdido.
Embora seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.